segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Vinte e um ano de estradas


Em todos esses anos, já encontrei desde estradas bucólicas e desniveladas até grandes rodovias asfaltadas que se estendem até onde o sol encontra a Terra. De uma estrada para a outra, vislumbrei muitos jardins, é claro, mas eles eram menos frequentes: encontrei mais caminhos esburacados, feios, com imensos lamaçais que me faziam atolar e não me deixavam prosseguir.

Eu sempre tentei ser um viajante forte e determinado: não sabia muito bem onde iria chegar, mas encarava os obstáculos com empenho elogiável. Atravessei riachos tênues que desfilavam por entre os pequenos pedregulhos, mas, como todas as pessoas, tive que quebrar imensas rochas vermelhas ou subir até a copa de árvores centenárias para prosseguir meu caminho. Mas, às vezes, eu tive vontade de desistir: sentar numa pedra na beira da estrada e chorar foi inevitável.

Cada obstáculo me ensinava coisas novas. Aos onze anos, eu já tinha que abrir os meus próprios caminhos no meio da mata fechada; era sufocante, angustiante, solitário. Mas, depois, quando outras florestas apareceram na minha frente, cortar alguns galhos e enfrentar alguns animais já me era menos traumático. Com frequência eu tentei olhar para esses maus momentos como lições pelas quais eu tinha que passar para saber lidar com situações semelhantes mais a frente. Mas nem sempre era assim: quando somos jovens, nos achamos o centro do universo e, algumas vezes, achamos que todos esses percalços são castigos dados a nós. Somente a nós!

Pensamos que passamos por esses maus momentos porque fomos destinados a isso. Eu já estava conformado: eu era uma pessoa destinada ao sofrimento, à solidão, ao fracasso. Alcancei pequenas conquistas no caminho, fiz amigos eternos e outros que nunca mais encontrarei, mas a minha sina era ter um caminho tortuoso até o fim dos meus dias.

Porém, não há nada como um passo após o outro.

Essa ansiedade da juventude faz com que sempre olhemos para frente, para o futuro; sofremos por antecipação sabendo o que outras pessoas já passaram. Evitamos o sofrimento; arranjamos atalhos na nossa caminhada...

Com a experiência, entretanto, eu percebi que, para podermos seguir em frente, precisamos voltar por alguns caminhos já percorridos. Voltar às mesmas pedreiras, aos mesmos desertos, às mesmas cascatas e saber que não mais nos machucaremos ali: eu consegui superar esses obstáculos e já posso me perdoar.

Eu aprendi que o lado de fora da caverna é angustiante, mas muito mais colorido. Eu preciso voltar aos caminhos tortuosos pelos quais passei, aqueles que me deixaram profundas cicatrizes e traumas, para entender alguns porquês.

Eu preciso me reconciliar com minha estrada: é preciso entender as lições, empreender algumas pequenas vinganças e ser capaz de perdoar o meu destino e, o mais importante, perdoar a mim mesmo!

Eu quero voltar em alguns lugares e enxergá-los com outros olhos: olhos que já vislumbraram paisagens exuberantes, cataratas monumentais e um grande cânion e ver que há beleza no meu passado. Colocar um pouco de cor nesse turbilhão de lembranças em sépia.

Nada como uma estrada à nossa frente!

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Rita Baiana


"E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, evolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxuriosos que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outros, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando. [...]

E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados.

Naquela mulata estava o grande mistério das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.

Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. [...] Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa.

E viu Rita Baiana levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura.
Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem misteriosa. [...]


Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração."

Trecho em que Jerônimo aprecia a beleza de Rita Baiana em O Cortiço, de Aluísio Azevedo. 
Imagem: Personagem Isabel (Camila Pitanga), da novela Lado a Lado.