terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Um homem esfolado não tem segredos



“O rato gritou quando ele o mordeu, contorcendo-se descontroladamente em suas mãos, frenético para fugir. A barriga era a parte mais macia. Ele rasgou a carne fresca, o sangue morno escorrendo por seus lábios. Era tão bom que trazia lágrimas aos olhos. Seu estômago roncou e ele engoliu. Na terceira mordida, o rato parou de lutar, e ele se sentiu quase satisfeito.

Então ouviu o som de vozes do lado de fora da porta do calabouço.

Parou imediatamente, com medo até de mastigar. Sua boca estava cheia de sangue, carne e pelos, mas não ousava cuspir ou engolir. Ouvia aterrorizado, paralisado como pedra, o roçar das botas e o tilintar das chaves de ferro. Não, pensou, não, por favor, deuses, não agora, não agora. Demorara tanto tempo para pegar o rato. Se me pegarem com esse bicho vão tirá-lo de mim (...).

Ele sabia que tinha que esconder o rato, mas estava com tanta fome. Já fazia dois dias desde que comera, talvez três. Ali embaixo, na escuridão, era difícil dizer. Embora os braços e as pernas estivessem finos como juncos, sua barriga estava inchada e vazia, e doía tanto que ele não conseguia dormir. (...)

Agachou-se no canto da cela, apertando o prêmio contra o queixo. Sangue escorria pelos cantos da boca, enquanto mordiscava o rato com o que restara de seus dentes, tentando engolir o máximo de carne morna que conseguisse antes que a cela se abrisse. A carne estava fibrosa, mas tão suculenta que ele pensou que talvez estivesse doente. Mastigou e engoliu, pegando pequenos ossos dos buracos na gengiva de onde seus dentes haviam sido arrancados. Doía mastigar, mas estava com tanta fome que não podia parar.

Os sons estavam ficando mais altos. Por favor, deuses, ele não está vindo por mim, orou arrancando uma das pernas do rato. Fazia um longo tempo desde que alguém viera até ele. Havia outras celas, outros prisioneiros. Algumas vezes ele os ouvia gritar, mesmo pelas grossas paredes de pedra. As mulheres sempre gritavam mais alto. (...)

Mas os passos pararam justamente quando ficaram mais altos, e as chaves retiniram do lado de fora da porta. O rato caiu de seus dedos. Ele limpou os dedos ensangüentados no calção.

— Não — murmurou. — Nãããooo. — Seus calcanhares rasparam na palha, quando tentou empurrar o próprio corpo contra o canto da cela, nas frias e úmidas paredes de pedra.

O som da trava se abrindo era o mais terrível de todos. Quando a luz bateu em cheio em seu rosto, ele soltou um grito.”

Trecho do Capítulo XIII de A Dança dos Dragões, de George R. R. Martin. Botando pilha para meu amigo Igor correr com a leitura de O Festim dos Corvos.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

233


Há pouco mais de duas semanas, eu estava numa boate uberlandense com uma série de amigos: comemorávamos o aniversário de uma delas; aquela era uma daquelas noites em que todos esperam dar o máximo de si para aproveitar a reunião. Nós adoramos esse lugar: os frequentadores assíduos, os preços das bebidas e as músicas... Ah, as músicas! Aquilo era um encontro de amigos maravilhoso: amigos que eu tinha conhecido nos meus idos 11 anos, amigos que eu tinha conhecido no Ensino Médio, outros que eu conheci há dois anos na faculdade, e outro grupo de pessoas que eu conheci há algumas semanas, mas que nem por isso eu deixo de nutrir um sentimento maravilhoso por eles. Era uma alegria inexplicável e eu queria fazer tudo aquilo valer a pena!


Esse dia me vem à cabeça quando eu vejo as infinitas reportagens sobre o incêndio numa casa de shows em Santa Maria (RS). Por mais que a imprensa seja sensacionalista até o último fio de cabelo, duzentas e trinta e três mortes não são qualquer coisa; não há como permanecer indiferente a essa notícia. Pensamos em números: quase mil pessoas estavam dentro daquela boate, ou seja, para duzentas e tantas mortes, tivemos mais de 700 que sobreviveram. Sim, tivemos tantos sobreviventes, mas (desculpem-me por cair no lugar-comum) para as famílias dos jovens que não tiveram essa mesma “sorte”, não foram 233 mortes, mas a morte de um filho, de um namorado, de uma amiga, de uma irmã.

Morreu um cara que estava fazendo planos para o Carnaval daqui duas semanas: ele ia viajar com mais quatro amigos no seu carro para uma festa de cinco dias; morreu uma moça que lia um romance americano e que estava apaixonada pelo personagem principal; um menino que gostava de assistir Os Simpsons, outra que gostava de brincar com o cachorro, outro de fazer barulho com o plástico-bolha, outra que gostava de panettone.

Sempre que eu vejo um número de mortes (eu sinto uma depressão tão grande quando vejo humanos traduzidos em números), eu imagino o mesmo tanto de cartas voando para vários lugares do mundo com a mesma notícia. E uma imagem que ficará guardada na minha memória sobre essa tragédia é a dos celulares dos mortos tocando incessantemente; pessoas do outro lado da linha clamando por notícias que acalmassem seus corações.

É difícil nos colocarmos no lugar dos outros, principalmente numa hora como essas. Eu tento pensar como as mães que eu conheço: minhas tias, minha madrinha, minha avó e minha própria mãe. Todas elas se solidarizam pela dor de outras mães: é impressionante como elas conseguem pegar para si a dor de outra mãe. Elas conseguem se colocar no lugar de outras mães e chorar pelos filhos delas como se fossem seus próprios.

Da mesma forma, penso que devemos nos colocar no lugar dos outros. Talvez nem todos sejam capazes de sentir as dores que outras pessoas que vivem tão distante estão sentindo; mas é importante nos colocarmos no lugar dessas pessoas para repensarmos sobre a vida. E sobre a morte! A morte é um assunto tão delicado para algumas pessoas (às vezes, mais do que sexo ou drogas), mas a única verdade é que, pra morrer, basta estar vivo! Quem disse que amanhã não é o dia da minha morte? Quem disse que amanhã não é o dia da sua morte? Deixe de dizer bobagens, Lucas! Mas é claro, ter consciência de uma coisa é diferente de traduzi-la em palavras: as palavras, às vezes, podem chocar, assustar, doer.

Os livros de auto-ajuda e as frases motivacionais das redes sociais dizem que devemos viver cada dia como se fosse o último de nossas vidas, mas, na prática, ninguém gosta de pensar que morrerá amanhã. Será que, se eu morrer amanhã, eu estarei feliz? Estarei satisfeito com tudo que eu fiz na Terra? Terei deixado alguma pendência? Mas ninguém pensa que morrerá amanhã. Ou nos próximos cinco minutos!

O que eu quero dizer é que o que aconteceu com os jovens na madrugada de sábado pra domingo poderia acontecer com qualquer um de nós. Qualquer um! Eu estava numa boate duas semanas atrás, com a capacidade de pessoas acima do limite e com uma saída diminuta para a quantidade de pessoas que se espremiam ali dentro. Os cenários são os mesmos! E eu tinha tantos amigos lá dentro... Cada um com seu jeitinho especial: Ana Paula, amiga antiga que agora divide apartamento comigo; Thábata, a rondonense mais divertida e bem-humorada que eu já conheci; Stella, com seus cabelos loiros e olhos azuis que me deixam ao chão cada vez que eu a encontro; Lúcio, com quem dividi experiências de amadurecimento durante toda a minha adolescência; Renata, que, mesmo que eu a tenha conhecido há poucos dias, já tenho muitos assunto em comum; Nilzilene, que me importuna de uma maneira divertida todas as manhãs; Flávia, que é minha companheira e meu porto seguro nos momentos difíceis da faculdade. E tantos outros que não estavam comigo naquele dia, mas já estiveram... É assim que eu vejo o número 233!

Mas... a morte é inevitável! Não estou dizendo com isso que não devemos sofrer pelas nossas perdas (e de outras pessoas), mas sim que temos que ter consciência da morte para que a vida não seja um saco de experiências frias e vazias. Não estou sendo insensível diante dessa tragédia: acho que, pelo contrário, estou tentando humanizar o 233!

A morte desses jovens foi chocante principalmente pelo número: como os números são capazes de moldar a intensidade de nossos sentimentos! Como os números são capazes de nos deixar mais indignados do que com uma única morte (mas pense que essa única morte, significa uma carta chegando na casa de qualquer um). Se me der vontade de chorar por esses jovens, eu chorarei; mas também ficarei triplamente satisfeito por ver meus amigos amanhã de manhã. Que estejamos todos aqui!

sábado, 26 de janeiro de 2013

Piada



Ou A desgraça tem graça

Thaís era uma piadista nata! Era filha de uma professora com um caminhoneiro e tinha mil histórias pra contar. Todos tinham a impressão de que Thaís era sempre bem-humorada: achavam que sua vida nunca lhe era difícil, que ela nunca chorava, que tudo pra ela estava bom. Em grande parte, era isso mesmo!

Ela gostava de tirar sarro de todas as más situações que a vida lhe colocava, seguindo aquele ditado que dizia que se a vida lhe desse as costas que você desse um chute na bunda dela. Até as contas atrasadas dela eram motivo para piadas!

E Thaís, de certa forma, gostava de se fazer de palhaça: gostava de contar o quanto a vida brincava com ela e ela conseguia contornar tudo aquilo com muito bom humor. Gargalhando sempre! E, se você resolvesse falar das suas lamúrias para Thaís, ela faria graça da sua desgraça. A desgraça tem graça!, ela sempre dizia. Alguns diziam que aquilo era ótimo para levantar nossos humores abatidos; outros achavam aquilo inconveniente e ofensivo da parte dela.

Thaís, então, foi convidada para uma festa numa boate badaladíssima da cidade. Foi com pouca coisa no bolso porque aquela noite ela prometia que viraria todos os goles de álcool que aguentasse: eu quero esquecer meu nome, ela gritava rindo. Toda arrumada para dançar e beber a noite toda, ela entrou no carro de uma amiga! Cantaram juntas durante todo o caminho.

A festa foi ótima: rock, vodka, tequila e garotos! Fechariam a noite com um McDonald’s como era de costume. Drive Thru 24 horas! A fila de carros estava imensa àquela hora da madrugada, quando todo mundo decidia arrebatar a noite com sanduíche, Coca-Cola e batata frita.

Por ali, um homem maltrapilho carregava um saco de panos sujos nas costas e aparecia do lado dos carros pedindo, em todos os vidros abertos, dois reais para comprar um salgado porque ele tinha morado na rua durante nove anos passando fome, frio e necessidade; tinha, enfim, conseguido uma casa pra alugar, mas ainda não tinha nem fogão nem panela pra fazer comida. Ele não tava bêbado nem drogado (e enfatizava isso!): só queria comer.

Quando falou todo o seu discurso ensaiado para Thaís, ela riu e soltou:

— Moço, eu não tô tendo nem pra mim. Eu é que tô precisando de uns duzentos reais pra pagar minhas contas. — A amiga (bêbada!) também caiu na gargalhada.

O homem não riu e finalizou:

— Olha se isso tem graça!

Apontou um revólver para a testa de Thaís e puxou o gatilho.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Tudo está conectado


De tempos em tempos, eu sinto necessidade de parar e refletir sobre o mundo que está ao meu redor; sobre o mundo que, de certa forma, fui eu que construí. Fui eu que fiz minhas escolhas; fui eu que defini meus gostos, meus amigos, meus inimigos. O mundo que nos cerca é definido por nós mesmos, mas, da mesma forma, ou ainda com mais intensidade, nós somos moldados por outros “mundos particulares” (ou “mundos subjetivos”). Só para começar, nós somos projeções dos nossos pais: acho que muitas pessoas não conseguem imaginar isso, mas nossos pais viveram muita coisa antes dos nossos nascimentos; Deus, o destino, os astros ou qualquer outra força superior que você acredite, mesclado às escolhas particulares desses dois indivíduos, fez com que eles se encontrassem. E assim foi com os pais dos nossos pais, e assim será com nossos filhos...

Nossas vidas só existem por causa desses encontros. Nossos pais namoraram outras pessoas, mas alguma coisa quis que aquele casal se juntasse. Se meu pai ou minha mãe tivessem decidido por se casar com outra pessoa, eu não existiria. Ou talvez existisse, mas eu não seria essa pessoa que sou hoje! Seria uma pessoa completamente diferente, que teria incorporado desejos, gostos, preconceitos e ambições de um mundo distinto do meu. Eu teria nascido em outro lugar e não teria encontrado as pessoas que estão ao meu redor. Incorporei a herança que eu trouxe dos meus pais para o meio social e fiz minhas escolhas: por causa do encontro deles, dos meus avós, bisavós... eu estou aqui pronto para fazer os meus encontros!

No fim, nossas vidas tem a estrutura que vem dos nossos pais, mas, mais superficialmente, são moldadas pelos nossos encontros. Temos relações com todo o mundo e esse contato com cada pessoa (o contato que aconteceu devido às minhas escolhas e às escolhas delas) é único e é uma peça a mais para o quebra-cabeça — ou a colcha de retalhos, se preferir — que forma nossa vida.

Cada dia que passa, eu tenho mais noção das energias que são transmitidas de uma pessoa para a outra. São energias que foram acumuladas durante as minhas tantas vivências e que serão transmitidas para quem estiver ao meu lado; para quem, de qualquer forma, tiver algum contato comigo. Essas palavras são apenas uma forma racional de transmitir algo que já estava impregnado no meu subconsciente: prova disso é que, desde muito tempo, eu penso que o aperto de mão, o abraço, o beijo, o sexo, o sorriso não são coisas banais. O contato físico só aumenta o grau das energias que são transmitidas sem barreiras entre os corpos.

E, de alguma forma maluca, acho que sinto uma necessidade imensa de não deixar que a minha chama, que as minhas energias se apaguem depois da minha morte. Sinto uma necessidade imensa de deixar marcas pelo mundo. Tenho medo de parecer vaidoso, mas fico pensando se os meus diários, minhas anotações ordinárias, meu bloco de notas estarão nas mãos de outras pessoas no futuro. O que as minhas palavras tão íntimas e pessoais significariam para alguém que nunca me viu? O que minhas palavras significariam para uma pessoa que viveu numa época diferente da minha e que tem medos e anseios diferentes? Me achará fútil ou concordará com minhas preocupações? Meu legado escrito, assim como o legado escrito, visual ou musical de tantos outros do passado — filósofos da Antiguidade, romancistas do século XIX, pinturas do Renascimento, esculturas barrocas, o rock dos anos 60, registros de batismo, cartas entre apaixonados, diários de bordo, documentos de Estado, filmes de família, álbuns de fotos, cadernos de receita —, é a prova de que existe vida após a morte.

O filme A Viagem , a obra mais pretensiosa que eu já vi em toda minha vida, fala justamente sobre isso: é um enredo que se passa em seis tempos diferentes — em três horas de exibição — e mostra que cada contato é um caminho com muitas possibilidades; que a morte é apenas mais uma porta que se abre; que cada crime ou ato generoso será um novo arranjo de peças no tabuleiro da nossa vida; e que os nossos sentimentos mais intensos — o amor, o desejo pela liberdade ou pela justiça — sobrevivem a nós mesmos, alterando a vida dos que ainda estão por vir.



quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Ódio


“O ódio tem melhor memória que o amor”. Honoré de Balzac


“O ódio é o prazer mais duradouro; os homens
 amam com pressa, mas odeiam com calma”. Lord Byron


Com a sombra do politicamente correto seguindo-nos por todos os cantos, aprendemos desde cedo que sentimentos ruins devem ser reprimidos. Mas eu nunca me dei bem com a repressão. Sempre fiquei encabulado quando me diziam que era errado sentir isso ou aquilo. Sentir. Sentimentos fazem parte da nossa vivência humana; sentimos amor, afeição, inveja, raiva, atração porque somos humanos. Ser humano é emanar sentimentos contraditórios a todo momento. E se dizem que odiar alguém é errado, eu digo que reprimir um sentimento é doentio!

O ódio é um sentimento requintado. Não é uma ira desvairada, momento em que cometemos atos passionais; também não chega a ser um rancor, como uma célula cancerígena que se desenvolve dentro de nós. O ódio é delicioso. Talvez esteja mais perto da vingança; e o prazer de saborear esses dois pratos juntos causa calafrios. O ódio é prazeroso, satisfatório, sexual. O ódio é provocante; tem que ser provocativo, senão será a comprovação de sua covardia, do seu medo contra o alvo do ódio.

A graça é saber dosar o tempero. O ódio é sofisticado, exige experiência, elegância, bom trato. Gritos e agressões são para a ralé, a baixaria; isso é raiva sem controle. O alvo do ódio tem que ser tratado com indiferença. Tem que haver desafio! É o momento de controlar seus músculos faciais e esconder qualquer expressão corporal que te denuncie. O alvo do ódio tem que ser tratado com desprezo. Saboreie essa palavra: des-pre-zo!

Percebo que as pessoas que eu amo tem sempre lugar nas minhas memórias diárias; as pessoas que eu odeio também. Talvez o prazer de amar e o de odiar venham da mesma fonte: são sentimentos puros e intransponíveis. Se não o forem, tenha certeza que não é amor nem ódio: são sentimentos menores.

É gostoso odiar: é preciso revisitar o seu ódio (e o seu amor) sempre que possível para moldá-lo, conhecê-lo, torná-lo tão real que seja quase perceptível pelo tato. Tocá-lo!

Penso que talvez seja melhor alimentá-lo e tirar o maior proveito que o ódio pode lhe oferecer, do que enjaulá-lo furioso, debatendo-se nas grades e correr o perigo de escapar num momento de descontrole. Irracional.

E que as paixões criem asas!


É preciso deixar claro que, com esse texto, não quero defender a violência e as agressões físicas, os crimes e as fobias. Tenho minhas motivações para escrevê-lo. 
Sou completamente contra a repressão de sentimentos, mas ao mesmo tempo não podemos nos deixar ser controlados por nossas paixões; talvez eu esteja me contradizendo, mas é preciso ser racional para lidar com tais sensações: autocontrole, autoconhecimento. Eu disse que somos livres para, veja bem, sentir. A graça da vida é saber contrabalancear a razão e a emoção.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Vida, pessoas e planos para o futuro



Quais tons eu queria deixar visíveis quando eu escrevesse esse texto? É enriquecedor compreender as visões de mundo de outras pessoas, pois, olhando para o outro, você acaba se conhecendo através de comparações e analogias. Fazendo esse exercício continuamente, eu acabei por descobrir que ainda tenho muitos traços da minha visão de mundo infantil — o que me deixa pensar que minha síndrome de Peter Pan autodetectada nunca foi curada —, que eu ainda acredito na bondade das pessoas, que eu confio no ser humano. Junto a isso, ainda olho para o mundo como se fosse uma novela do Manoel Carlos com emoções à flor da pele, amores arrebatadores, personagens e situações complexas e sem explicações. Além disso, noto nos meus contos dos últimos anos histórias cada vez mais descrentes com a humanidade, personagens cada vez mais entregues à desesperança. Ou seja, quanto mais eu tento me conhecer, mais confuso eu fico.

E volto à pergunta inicial: quais tons eu queria deixar visíveis quando eu escrevesse esse texto? Pensei que talvez pudesse explicar minha visão de mundo num parágrafo, mas parece que as coisas ficaram mais complicadas. O balanço do ano passado e o olhar para o novo ano talvez sejam uma junção de todas essas personalidades conflitantes que existem dentro de mim.

O ano que acabou vai deixar saudades! Foi o ano de olhar para minha adolescência e justificar todas as tristezas e incertezas do passado. Por mais óbvio que isso seja, eu comecei a perceber que a vida é um processo contínuo de avanços e regressos. E tudo isso foi importante para eu entender a minha identidade. Na adolescência, sentimos uma vontade imensa de fazer parte de algo, de alguma tribo que se encontra no colégio. Nessa minha retrospectiva, eu acabei por perceber que eu não fiz parte de nenhuma tribo específica: acho que por minha dificuldade de me encontrar, eu estava sempre percorrendo os grupos, conhecendo pessoas, trocando ideias. Mas chega um momento que temos que nos encontrar, descobrir quem somos.

O ano passado foi importante pra isso. Eu me encontrei! Em nenhum outro momento e nenhum outro lugar eu me senti tão parte integrante do todo. A universidade, o grupo de amigos e conhecidos, a família... Todos os cenários me eram próximos, íntimos. Eu me senti confortável com tudo. Quer dizer, quase tudo.

Eu me encontrei e me descobri. Acabava que eu me sentia como o Leão Covarde das histórias do Mágico de Oz. As pessoas sempre fizeram questão de me mostrar o quanto eu era fraco, mimado e covarde. E eu enfrentei os desafios que a vida me colocou nesse ano e, como o Leão, descobri que a coragem estava dentro de mim, eu só precisava encontrá-la.

Descobri que as pessoas são lindas! Que eu posso fazer novos “amigos de infância”, que eu posso rir despreocupadamente, que eu posso me comportar como um louco, “porque todo mundo é; e piores são aqueles que não sabem que são, porque ficam repetindo apenas o que os outros mandam." Eu consegui surpreender as pessoas à minha volta, mas o que realmente importa, eu consegui me surpreender.

Descobri que as pessoas são coisas horríveis! Que a maldade, a dissimulação são inerentes ao ser humano. Quantas pessoas não estão dedicadas diariamente em te deixar pra baixo, “sugar” as suas boas vibrações (ainda não sei se acredito em “vibrações”) e falar o seu nome com deboche!

Começa 2013 e estou cheio de planos: ler menos no computador, ler mais no papel, me alimentar melhor (desculpem-me pelo oblíquo depois da vírgula), fazer exercícios físicos, assistir a mais clássicos, conversar mais. Viver mais! E conhecer as pessoas: as boas e as más! Passar horas e horas a fio fazendo análises psicológicas da humildade de umas e da falsidade de outras. Dizer aos quatro cantos o quanto eu amo as pessoas, sorrir de orelha a orelha com um ato de gentileza; ao mesmo tempo em que eu mostrarei a minha incredulidade com os atos horripilantes que eu vejo pelo Jornal Nacional e me dedicar a um dos meus hobbies favoritos: a maledicência.

Eu quero surpreender 2013! Vamos mexer as peças e ver o que a vida tem pra me oferecer.