sexta-feira, 4 de julho de 2014

Insuportáveis olhos castanhos


Que não seja imortal posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Vinicius
E, apesar de todo esse amor que eu sinto, você se transformou num pesadelo que me persegue à luz do dia, num fantasma que me atormenta, me acompanha como uma sombra. Não consigo me desvencilhar dessa perturbação...
Você sempre tão silencioso, chegou timidamente na minha vida por obra do acaso e se transformou no símbolo do meu egoísmo e da minha vaidade. Nossa amizade que durou alguns dias trouxe cortes profundos na sua pele, mas deixou rasgos dentro de mim: feridas que não cicatrizaram mesmo depois de todos esses anos. Você é a lembrança do quanto eu sou capaz de me preocupar apenas comigo mesmo, não me importando com a dor que eu causava ao ignorar seus sentimentos, passando por eles como que pisando em flores num jardim bem cuidado.
O que eu senti por você, naquele momento, foi uma pequena afeição que pouco significava pra mim. O seu sofrimento não me comovia; não sentia nenhuma gota de compaixão pela sua dor. Se você tomava antidepressivos pra conseguir dormir por causa das suas dores de amor... Pouco me importava.
Mas o seu silêncio, suas poucas palavras, sua timidez e esses seus insuportáveis olhos castanhos voltariam pra se vingar.
Você reapareceu com tatuagens no braço, com um sorriso radiante e de óculos de aro grosso. Sua beleza e o seu jeito tímido me deixavam encantado, mesmo que, naquela época, você não fosse tão hábil com as palavras. Nossa, naquela época... Ah, eu queria voltar à minha vida naqueles momentos antes de te conhecer, antes de ter sido enfeitiçado e ter caído apaixonado. Eu queria nunca ter te conhecido!
Eu poderia voltar no tempo e fazer tudo diferente: ter sido mais cauteloso; em último caso, nem ter te conhecido, nem ter feito esforço para te conhecer. Eu não teria sofrido tanto, eu não teria me jogado apaixonado no mesmo tempo que você, friamente, se afastava e eu me deixava com o rosto no asfalto: ou no chão sujo daquela boate. Todo esse sofrimento e essa dor que me incomodam não existiriam. Escrevi isso no meu diário uns meses atrás.
Nos dias em que eu chorava estirado na minha cama, só conseguia me lembrar da sua camisa suja de mostarda. Os seus olhos castanhos amendoados, enormes que me observavam e sorriam num movimento sincronizado ao dos seus lábios. Você aparecia nos meus sonhos e desaparecia. Tentou voltar, mas eu fui mais forte: resisti às suas investidas e me vinguei me entregando a outros corpos mais interessantes.
E eu não imaginava que poderia existir uma vingança ainda maior da sua parte...
Voltou tímido, silencioso (como de costume), de blusa marrom e sorriso largo na época que você estava lendo Jack Kerouac. O trauma da minha decepção anterior me deixou com os passos inseguros: fui pisando em ovos; fui cauteloso, com medo de escorregar nos cacos da minha vida espalhados no chão e cair mais uma vez.
O seu autocontrole e a maneira como você retribuía o meu carinho me deixaram mais confiante. E eu estive cego; na verdade, ainda não consigo ver muito bem atrás dessa neblina que embaça as lentes dos meus óculos. De um afeto inocente e egoísta, passando por uma paixão desenfreada e irracional, agora eu me encontrava completamente submerso num amor confortável, uma rotina que dava sentido aos meus dias, um fogo brando que, com muito esforço, conseguiu se manter aceso durante um tempo; esse calor que conseguia suprir todas as minhas carências, satisfazia todos os meus desejos...
E você preferiu jogar um pano grosso em cima dessas brasas. Mas teria sido melhor se você jogasse logo um balde cheio d’água: a coberta grossa controlou o essa chama durante um tempo, mas, depois, uma arfada de ar fez com que o fogo se espalhasse, queimasse o pedaço de pano e ficasse mais forte, incontrolável, insuportável... como seus olhos.
Eu poderia voltar no tempo e fazer tudo diferente: ter sido mais cauteloso; em último caso, nem ter te conhecido. Eu não teria sofrido tanto... Ai, não teria sofrido, mas também não teria amado. Não teria conhecido as nuanças do seu mal-humor matinal e não saberia do seu amor por sorvete de abacaxi e por Amélie Poulain; não teria te visto cantando uma música brega enquanto dançava nem teria sentido a emoção de sair daquela festa de mãos dadas com você; e também não teria aquelas lembranças da praia e não teria aprendido com você as belezas dos road-movies.
Eu te amo, mas eu amaria se eu deixasse de te amar.