"E viu a Rita Baiana, que
fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar.
A lua destoldara-se nesse momento, evolvendo-a na sua coma de prata, a cujo
refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível,
simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de
serpente e muito de mulher.
Ela saltou em meio da
roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça,
ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal,
num requebrado luxuriosos que a punha ofegante; já correndo de barriga
empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse
afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se
encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado,
estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca
parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente,
erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outros, sobre a nuca,
enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando. [...]
E Jerônimo via e escutava,
sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados.
Naquela mulata estava o
grande mistério das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz
ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o
aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras;
era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era
o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a
castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra
verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia
muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as
fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe
cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota
daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas
que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência
afrodisíaca.
Isto era o que Jerônimo
sentia, mas o que o tonto não podia conceber. [...] Só deu por si, quando, já
pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se
recolheu à casa.
E viu Rita Baiana levada
para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura.
Jerônimo ficou sozinho no
meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam,
lá ia caminhando em silêncio na sua viagem misteriosa. [...]
Mas Jerônimo nada mais
sentia, nem ouvia, do que aquela música embalsamada de baunilha, que lhe
entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos
crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de
cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração."
Trecho em que Jerônimo aprecia a beleza de Rita Baiana em O Cortiço, de Aluísio Azevedo.
Imagem: Personagem Isabel (Camila Pitanga), da novela Lado a Lado.
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