Que
não seja imortal posto que é chama
Mas
que seja infinito enquanto dure
Vinicius
E,
apesar de todo esse amor que eu sinto, você se transformou num
pesadelo que me persegue à luz do dia, num fantasma que me
atormenta, me acompanha como uma sombra. Não consigo me desvencilhar
dessa perturbação...
Você
sempre tão silencioso, chegou timidamente na minha vida por obra do
acaso e se transformou no símbolo do meu egoísmo e da minha
vaidade. Nossa amizade que durou alguns dias trouxe cortes profundos
na sua pele, mas deixou rasgos dentro
de mim: feridas que não cicatrizaram mesmo depois de todos esses
anos. Você é a lembrança do quanto eu sou capaz de me preocupar
apenas comigo mesmo, não me importando com a dor que eu causava ao
ignorar seus sentimentos, passando por eles como que pisando em
flores num jardim bem cuidado.
O
que eu senti por você, naquele momento, foi uma pequena
afeição que pouco significava pra mim. O seu sofrimento não me
comovia; não sentia nenhuma gota de compaixão pela sua dor. Se você
tomava antidepressivos pra conseguir dormir por causa das suas dores
de amor... Pouco me importava.
Mas
o seu silêncio, suas poucas palavras, sua timidez e esses seus
insuportáveis
olhos castanhos
voltariam pra se vingar.
Você
reapareceu com tatuagens no braço, com um sorriso radiante e de
óculos de aro grosso. Sua beleza e o seu jeito tímido me deixavam
encantado, mesmo que, naquela época, você não fosse tão hábil
com as palavras. Nossa, naquela época... Ah, eu queria voltar à
minha vida naqueles momentos antes
de te conhecer, antes
de ter
sido enfeitiçado e ter caído apaixonado. Eu queria nunca
ter te conhecido!
Eu
poderia voltar no tempo e fazer tudo diferente: ter sido mais
cauteloso; em último caso, nem ter te conhecido, nem ter feito
esforço para te conhecer. Eu não teria sofrido tanto, eu não teria
me jogado apaixonado no mesmo tempo que você, friamente, se afastava
e eu me deixava com o rosto no asfalto: ou no chão sujo daquela
boate. Todo esse sofrimento e essa dor que me incomodam não
existiriam. Escrevi isso no meu diário uns meses atrás.
Nos
dias em que eu chorava estirado na minha cama, só conseguia me
lembrar da sua camisa suja de mostarda. Os seus olhos castanhos
amendoados, enormes que me observavam e sorriam num movimento
sincronizado ao dos seus lábios. Você aparecia nos meus sonhos e
desaparecia. Tentou voltar, mas eu fui mais forte: resisti às suas
investidas e me vinguei me entregando a outros corpos mais
interessantes.
E
eu não imaginava que poderia existir uma vingança ainda maior da
sua parte...
Voltou
tímido, silencioso (como de costume), de blusa marrom e sorriso
largo na época que você estava lendo Jack Kerouac. O trauma da
minha decepção anterior me deixou com os passos inseguros: fui
pisando em ovos; fui cauteloso, com medo de escorregar nos cacos da
minha vida espalhados no chão e cair mais uma vez.
O
seu autocontrole e a maneira como você retribuía o meu carinho me
deixaram mais confiante. E eu estive cego; na verdade, ainda não
consigo ver muito bem atrás dessa neblina que embaça as lentes dos
meus óculos. De um afeto inocente e egoísta, passando por uma
paixão desenfreada e irracional, agora eu me encontrava
completamente submerso num amor confortável, uma rotina que dava
sentido aos meus dias, um fogo brando que, com muito esforço,
conseguiu se manter aceso durante um tempo; esse calor que conseguia
suprir todas as minhas carências, satisfazia todos os meus
desejos...
E
você preferiu jogar um pano grosso em cima dessas brasas. Mas teria
sido melhor se você jogasse logo um balde cheio d’água: a coberta
grossa controlou o essa chama durante um tempo, mas, depois, uma
arfada de ar fez com que o fogo se espalhasse, queimasse o pedaço de
pano e ficasse mais forte, incontrolável, insuportável... como seus
olhos.
Eu
poderia voltar no tempo e fazer tudo diferente: ter sido mais
cauteloso; em último caso, nem ter te conhecido. Eu não teria
sofrido tanto... Ai, não teria sofrido, mas também não teria
amado. Não teria conhecido as nuanças do seu mal-humor matinal e
não saberia do seu amor por sorvete de abacaxi e por Amélie
Poulain; não teria te visto cantando uma música brega enquanto
dançava nem teria sentido a emoção de sair daquela festa de mãos
dadas com você; e também não teria aquelas lembranças da praia e
não teria aprendido com você as belezas dos road-movies.
Eu
te amo, mas eu amaria se eu deixasse de te amar.
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