[eu não sei de onde tirei isso²]
Os dois estavam
sozinhos, perdidos numa praia deserta. Não tinham a mínima ideia de como
voltar.
— A culpa é toda
sua por me passar raiva. Acabamos perdidos — disse o primeiro.
— Você que é leso
e fica pondo a culpa em mim — disse o outro. — E eu ainda tenho uma pederneira.
Vou ser bonzinho e te livrar dessa também. Vou botar fogo nessa mata toda. Alguém vai encontrar a gente.
— Tenho certeza
que, se você tivesse um bote que só coubesse uma pessoa, você não me livraria
dessa.
— E você faria
diferente?
— Mas você me
deve dinheiro!
— Só por causa
disso eu deveria te salvar? — o outro diz tentando usar a pederneira. — É...
como é que usa isso aqui mesmo?
— Nossa, mas
você é um herói mesmo, hein.
De repente, uma
chuva de flechas. Uma acertou a panturrilha de um; outra acertou os fundilhos
do outro. Caíram desmaiados.
— Ih, mas a
minha carne é muito ruim!
Agora, os dois
estavam amarrados em árvores separadas, com os braços para trás, sem camisa,
com as testas marcadas de vermelho. Enquanto isso, os membros da tribo
preparavam o ritual: uns esquentavam a água no caldeirão, outros cantavam e
dançavam o Uga-uga-rá!
Os membros da
tribo se pintavam de preto com listras verdes e vermelhas imitando répteis da
mata. Também tinham pintas brancas no rosto. Balançavam chocalhos e, nos pés,
as conchas amarradas produziam sons.
— Uga-uga-rá!
E os capturados
se preparavam (se é que isso é possível) para serem cozidos vivos:
— A minha carne
é muito dura. Vocês precisam d’um amaciante de carne. Vocês tem isso aí?
— Uga-uga-rá!
— Esquece, cara!
— o outro aconselha. — Essa gente não entende nossa língua. Eles são um bando
de ignorantes!
— Talvez eles te
soltem também...
— Eu não preciso
da sua ajuda.
— Do mesmo jeito
que você não precisou de mim com a
pederneira? Tudo bem, então. Na verdade, eles vão ver a bondade na minha cara.
Eu tenho filho pequeno pra criar! Diferente de você, canalha!
— Canalha? Eu
também tenho filho pra criar.
— Não tem, nada!
Já chega de mentiras. — Ele tenta alcançar o outro para chutá-lo. — Você é um
enganador barato. Me devolve meu dinheiro, seu desgraçado!
— Uga-uga-rá!
— Eu vou te
pagar. É só ter paciência.
— Paciência?!
Você está me pedindo para ter paciência há mais de um ano! Me devolve meu
dinheiro!
— Olha, já que a
gente vai morrer mesmo... Eu nunca vou te pagar. Nunca nem pensei nisso.
Pronto, falei.
— Uga-uga-rá!
— Seu filho da
mãe!
— E pra que você
precisa de dinheiro agora? Vamos morrer de qualquer jeito. Você nunca foi à
missa e ouviu o padre dizer que da terra não levamos nada...
— CALA A BOCA!
Eu tenho filho pra criar, seu cretino.
— Mas ele também
tem mãe.
— Claro! Eles
não são filhos de parideira. E ela precisa de mim também. A gente se ama.
O outro ri.
— Nessa hora,
ela deve estar na sua cama com o Ricardão.
— Uga-uga-rá!
— Ela não é como
a sua mãe! — Vira-se para a tribo: — Eu preciso criar meu filho. Deixa eu ir
embora.
— Você acha que
esses índios pelados e analfabetos vão entender o que você fala? Isso aí é que
nem bicho.
— Nóis entender
o que cara pálida fala.
O outro engole
seco.
— Nóis não ser
bicho — o cacique continua. — E nóis não gosta de traidor. — Vira-se para
alguns jovens da tribo: — Solta o que tem filhote.
— Como assim? E
eu?
— Ir pro
caldeirão. Nóis não soltar traidor.
Ele ainda
alimenta uma última chama de esperança.
— Cara, me tira
daqui. Chama ajuda. Pel’amor de Deus!
O outro diz
enquanto se livra das cordas:
— O que foi que
você disse agora há pouco? Que não precisa da minha ajuda, não é?
— Mas agora é
diferente.
Mas o que está
livre já está rindo e correndo para longe. Ainda se vira e grita de longe:
— Bom apetite!