quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Uga-uga-rá


[eu não sei de onde tirei isso²]

Os dois estavam sozinhos, perdidos numa praia deserta. Não tinham a mínima ideia de como voltar.

— A culpa é toda sua por me passar raiva. Acabamos perdidos — disse o primeiro.

— Você que é leso e fica pondo a culpa em mim — disse o outro. — E eu ainda tenho uma pederneira. Vou ser bonzinho e te livrar dessa também. Vou botar fogo nessa mata toda. Alguém vai encontrar a gente.

— Tenho certeza que, se você tivesse um bote que só coubesse uma pessoa, você não me livraria dessa.

— E você faria diferente?

— Mas você me deve dinheiro!

— Só por causa disso eu deveria te salvar? — o outro diz tentando usar a pederneira. — É... como é que usa isso aqui mesmo?

— Nossa, mas você é um herói mesmo, hein.

De repente, uma chuva de flechas. Uma acertou a panturrilha de um; outra acertou os fundilhos do outro. Caíram desmaiados.

— Ih, mas a minha carne é muito ruim!

Agora, os dois estavam amarrados em árvores separadas, com os braços para trás, sem camisa, com as testas marcadas de vermelho. Enquanto isso, os membros da tribo preparavam o ritual: uns esquentavam a água no caldeirão, outros cantavam e dançavam o Uga-uga-rá!

Os membros da tribo se pintavam de preto com listras verdes e vermelhas imitando répteis da mata. Também tinham pintas brancas no rosto. Balançavam chocalhos e, nos pés, as conchas amarradas produziam sons.

— Uga-uga-rá!

E os capturados se preparavam (se é que isso é possível) para serem cozidos vivos:

— A minha carne é muito dura. Vocês precisam d’um amaciante de carne. Vocês tem isso aí?

— Uga-uga-rá!

— Esquece, cara! — o outro aconselha. — Essa gente não entende nossa língua. Eles são um bando de ignorantes!

— Talvez eles te soltem também...

— Eu não preciso da sua ajuda.

— Do mesmo jeito que você  não precisou de mim com a pederneira? Tudo bem, então. Na verdade, eles vão ver a bondade na minha cara. Eu tenho filho pequeno pra criar! Diferente de você, canalha!

— Canalha? Eu também tenho filho pra criar.

— Não tem, nada! Já chega de mentiras. — Ele tenta alcançar o outro para chutá-lo. — Você é um enganador barato. Me devolve meu dinheiro, seu desgraçado!

— Uga-uga-rá!

— Eu vou te pagar. É só ter paciência.

— Paciência?! Você está me pedindo para ter paciência há mais de um ano! Me devolve meu dinheiro!

— Olha, já que a gente vai morrer mesmo... Eu nunca vou te pagar. Nunca nem pensei nisso. 
Pronto, falei.

— Uga-uga-rá!

— Seu filho da mãe!

— E pra que você precisa de dinheiro agora? Vamos morrer de qualquer jeito. Você nunca foi à missa e ouviu o padre dizer que da terra não levamos nada...

— CALA A BOCA! Eu tenho filho pra criar, seu cretino.

— Mas ele também tem mãe.

— Claro! Eles não são filhos de parideira. E ela precisa de mim também. A gente se ama.

O outro ri.

— Nessa hora, ela deve estar na sua cama com o Ricardão.

— Uga-uga-rá!

— Ela não é como a sua mãe! — Vira-se para a tribo: — Eu preciso criar meu filho. Deixa eu ir embora.

— Você acha que esses índios pelados e analfabetos vão entender o que você fala? Isso aí é que nem bicho.

— Nóis entender o que cara pálida fala.

O outro engole seco.

— Nóis não ser bicho — o cacique continua. — E nóis não gosta de traidor. — Vira-se para alguns jovens da tribo: — Solta o que tem filhote.

— Como assim? E eu?

— Ir pro caldeirão. Nóis não soltar traidor.

Ele ainda alimenta uma última chama de esperança.

— Cara, me tira daqui. Chama ajuda. Pel’amor de Deus!

O outro diz enquanto se livra das cordas:

— O que foi que você disse agora há pouco? Que não precisa da minha ajuda, não é?

— Mas agora é diferente.

Mas o que está livre já está rindo e correndo para longe. Ainda se vira e grita de longe:

— Bom apetite!

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