Um menino feliz e serelepe
resolveu ir à Biblioteca Municipal estudar para um trabalho. Depois de dois
ônibus e um pouco de caminhada, chegou animado ao lugar. Abriu os cadernos, as
apostilas, pegou um dicionário na prateleira e tudo corria bem.
Um ventilador no canto da sala de
estudos esvoaçava algumas folhas em cima da mesa do menino. Ele colocou sua
carteira de couro e seu celular sobre as folhas para que não voassem. Tudo
corria bem.
Mas é segunda-feira... depois do
almoço... dá aquela sonolência... as letras começam a embaralhar... a gente já
não consegue assimilar tudo que está lendo. E esse menino resolveu dar um
cochilo em cima dos cadernos. Quinze minutos não é nada! E deitou sobre os
braços.
Quando acordou, pegou o celular e
conferiu as horas: 15hrs. Mas... tá faltando alguma coisa no cenário... A
CARTEIRA!
É difícil admitir, mas esse
menino sou eu. Hoje à tarde.
Eu fiquei desesperado. Não é
possível que eu tenha perdido minha carteira com documentos, cartões de
crédito, cinco fotos 3x4 e três notas de R$2!
Saí perguntando às outras pessoas
que estavam por ali. Alguém tinha que ter visto alguma coisa:
— Uai, tinha um homem moreno de camisa azul andando por aqui.
Ele tava muito suspeito.
Como assim, gente? Como que é uma
pessoa suspeita? Eu não vou acusar o homem só porque ele é moreno.
Cheguei numa das bibliotecárias e
disse:
— Que que eu faço? Tenho que
fazer um boletim de ocorrência! Liga pra polícia. Eu tô ferrado.
Vendo o meu desespero, um rapaz,
que eu descobri se chamar Marcelo, disse que viu esse mesmo homem moreno de
camisa azul mexendo nas minhas coisas, mas ele achou que ele estava comigo.
— Ow, cara, desculpa aí!
— Naaaaada! A culpa não foi sua,
não!
E eu andando de um lado pro
outro. Por fora eu era só um rapaz discreto que tinha perdido a carteira, mas
por dentro eu queria gritar e fazer um barraco imenso dentro da Biblioteca.
Dramático!
Os policiais chegaram, eu me
apresentei e eles começaram a preencher o BO:
— Sua identidade, por favor.
— Er... moço, levaram minha
carteira.
— Ah, é! Você sabe o número de
cor?
E ele me fez um monte de
perguntas. Dentre elas:
— Me conta o que aconteceu
direito.
Eu falei tudo: estudo, sono,
carteira e celular em cima dos papéis, a falta de alguma coisa. Foi
nessa hora
que uma bibliotecária, que não tinha nada a ver com nada, entrou no caso:
— Uai, mas, se o celular tava ao
lado da carteira, por que ele não levou o celular também?
Por fora eu fiz essa cara, mas
por dentro eu quis dizer:
— Essa pergunta é meio difícil de
responder, né. A senhora não quer ligar pro ladrão, não? E isso não vem ao caso
agora!
A entrevista continuou. Contei da
testemunha.
— Ah, teve testemunha. Então,
chama ele.
Eu fiquei tão grato pelo Marcelo
ter ido me dizer o que tinha visto e ainda por cima ter me pedido desculpa que
eu disse que não tinha necessidade de ele prestar depoimento.
Eu não era capaz de fazer uma
descrição do ladrão já que eu estava dormindo a centímetros do furto,
então a bibliotecária que tinha me prestado auxílio foi chamada.
— Ele é moreno, negro de cabelo
liso.
— Negro do cabelo liso? — o
policial riu. — Difícil, hein!
Eu lá desesperado com os meus
cartões nas mãos de um desconhecido e o homem ainda faz
piadinha. O pior foi a
lição de moral:
— Da próxima vez, você presta
mais atenção. Se você sabe que vai deixar a carteira largada por muito tempo,
coloca ela no bolso ou na mochila. Não pode se desligar desse jeito.
Isso foi só a introdução. Eu
senti que ele tava querendo jogar a culpa em cima de mim, mas... deixei pra lá.
Ainda jogaram a culpa no Marcelo, que viu tudo, mas nada fez. Eu fiquei com
raiva! A culpa não era minha nem do Marcelo. Nós não fizemos nada de errado. O
culpado é o ladrão que pegou minha carteira, ora!
E quando eu fui agradecer ao
Marcelo, ele me perguntou:
— Ow, cara, tu não precisa de um
dinheiro aí, não? Pra tu voltar pra casa?
Fiquei até emocionado. Ainda
existem corações bondosos nesse mundo.
Mesmo assim, não tinha mais clima
pra estudar. Fui embora e todo homem moreno, de cabelo liso e camisa azul me
chamava a atenção. Eu quase abordei um eletricista.
Agora, todo mundo tá tentando me
consolar dizendo que não faz sentido esse homem continuar com essa carteira.
Não tinha dinheiro (esculacha mesmo)! Ele vai devolver a carteira pra
Biblioteca!
E eu? Fico só esperando, né.
Sentado. Pena que eu não sei o nome do ladrão, porque senão eu já estaria
seguindo ele... no Twitter.
P.S. Acabei de receber o BO por
e-mail. Que modernidade! Colocaram que minha cútis é branca e o assaltante
aparenta 35 anos.