domingo, 13 de novembro de 2011

Poetamorfando



“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”
Fernando Pessoa, Autopsicografia

Chove lá fora. Quarto escuro, assoalho de madeira, escrivaninha num canto, cheiro de querosene... Relâmpago!

O poeta escrevia no seu bloco de papel pardo com seu lápis de ponta grossa. Ouvia-se o barulho das gotas de chuva e do atrito do grafite no papel.

Era um poema de amor e o poeta quase que podia ver o rosto de sua musa inspiradora à luz da lamparina: seus olhos vivos, sua pele branca, seu ar tímido e sensual... Naquela hora, o racional só servia para juntar as letras e formar palavras, mas era o coração que dava vida às rimas, que pegava emprestada a mão do poeta para mostrar a força que batia.

Mas não era um amor correspondido e aquelas palavras românticas se transformavam; o coração tomava-se de dor e chorava aquelas letras cabisbaixas: uma letra trêmula e hesitante. Relâmpago!

E ainda havia um rival: quente, ousado e seguro. Sorria-lhe debochando do poeta. O poeta sentia uma agitação que subia pelas suas coxas, um enrijecimento da coluna, um fogo, uma erupção no seu peito. O coração escrevia com traços retos, rápidos e, às vezes, um tremor nas mãos fazia um risco no canto da página. 

Por fim, ele se deu por vencido e a morte pareceu-lhe branca, clara, calma. Enaltecia-a! O coração sentia isso. O sangue corria pelo corpo sem ânimo, desencorajado. E as palavras choravam com (como) o poeta. O fim era belo em versos e rimas.

Ele (o coração ou o poeta?) se deu por vencido. Batimentos fracos, pedaços que caíam! Todas as sensações descritas em pedaços de papel: o legado de um poeta apaixonado. A única herança deixada; produzida antes de trocar o lápis por um punhal. Ele se deu por vencido! Relâmpago!

O coração era jovem, mas já estava cansado de bater. As mãos agiam pela força da emoção. Aliás, o corpo inteiro: os olhos firmes, a mente vazia, o pulmão interrompido. Só as pernas insistiam em tremer. Na verdade, até o coração batia nervoso, mas a missão já tinha sido dada às mãos.

Um último suspiro, um movimento súbito e o sangue escorrendo da mesa para o chão. Relâmpago!

O poeta tinha dado morte a seus versos.

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