Quando a saudade aperta
É só fechar bem forte os olhos
Que logo ela escorre de mim.
Lucão
Enquanto, da minha janela, eu o observava ir embora na manhã
de quinta-feira, também senti uma vontade enorme de fugir; queria ter pra onde
me esconder, queria ter alguém que me mostrasse que caminho tomar: eu seguia
meu caminho tortuoso e as circunstâncias me obrigavam a pegar um atalho
inesperado. Na minha inocência apaixonada — ou na minha paixão
inocente — fiz planos, e diante dos seus cacos espalhados
no chão, pensei que esse seria o meu maior tormento... Mas as lembranças são ainda mais cruéis com os
amores feridos.
Quando percebi, as lembranças já me engoliam, me levantavam
e depois me afogavam como aquelas ondas do mar que enfrentamos de mãos dadas:
assim como eu não conseguia resistir à força do oceano, meu fôlego era pouco
para driblar as lembranças. Lembranças tão vívidas que eu podia sentir seus cheiros,
suas texturas, seus sabores. Ainda posso.
Elas me atacavam no meio da tarde ou durante o sono trazendo
a sua imagem diante dos meus olhos marejados. Lembrava-me de como era vê-lo
todos os dias e, mesmo assim, ter a sensação de que era a primeira vez; de como
eu nunca soube lidar com o seu cheiro inebriante, eu embriagado, sorrindo
bêbado apaixonado.
As lembranças me mostravam seu sorriso de timidez que
semicerrava os olhos e escondia os dentes; depois, sorriso branco iluminado. E
ainda os sussurros com aquela voz grave e macia como lençóis limpos, que
acariciavam meus ouvidos: e eu mais uma vez estonteado, trocando os passos. A
mesma voz, que mais tarde embriagada, gritava meu nome no metrô, na calçada, de
braços abertos olhando pro mar: o mesmo mar que sempre me trará tais
lembranças. Como não ter saudade também dos silêncios, das intenções combinadas
que dispensavam as palavras, que nos desobrigavam das roupas, que nos envolviam
em suores.
Os cabelos bem cortados, a nuca, a única parte do corpo que
eu admirava enquanto o olhava de longe; a blusa marrom que pedia pra
enfiar-me debaixo dos seus abraços; à distância, os seus
beijos de lembrança no fim das minhas tarde eram como borrifadas de um perfume
bom: fugazes e prazerosas.
Minha memória estupidamente perfeita me lembrava da mão
carinhosa sob meu queixo, escondida pela meia-escuridão do cinema, que me
deixou com a mão suada, incapaz de ler as legendas do filme. Aquele dia quente
que teve gosto de chocolate, de novidade, de vinho e de confissões.
E os beijos... Inéditos. Foi com ele que descobri como
comunicar-me pelos lábios, mostrar-lhe os meus sentimentos pelos beijos: desde
os mais puros, delicados como uma flor, até os mais atrevidos, com muita língua
e pouco fôlego. Beijos salgados e cheios de areia, beijos tímidos cochichados,
beijos desesperados pelas despedidas, beijos com o gosto do café da manhã.
Beijos roubados, trocados, pedidos, vendidos e comprados, tendo outros como moeda.
E na quinta-feira pela manhã... Eu teria me
demorado mais se eu soubesse que aquele seria nosso último beijo.
Atormentado, não conseguia avaliar o tamanho do meu
esforço para apagar todas essas lembranças: tentando me consolar, eu já
conseguia enxergá-las, ali num futuro próximo, todas acinzentadas, incapazes de
me causar qualquer dano. Depois de horas de suor frio e banhos quentes, soube
que eu não seria capaz. Eu não conseguiria e não quereria apagar as lembranças
mais doces desses tempos. Eu não saberia como esquecer a camiseta laranja do
nosso primeiro beijo e do nosso último abraço: eu não quero esquecer. Não me
deixe esquecer. Eu não vou me deixar esquecer. Eu não vou deixar de sentir isso
que eu sinto por você. Deixa eu segurar sua mão.