Quando somos crianças, qualquer experiência médica nos deixa
animados: óculos, aparelho dentário, gesso no braço. Eu tinha dez anos quando
eu fui ao oftalmologista pela primeira vez e onze quando eu ganhei o meu
primeiro par de óculos. É estranho lembrar o quanto eu fiquei animado com
aquilo.
Nessa época eu já vivia num ambiente adolescente, quando
estamos nos descobrindo e quando a gente é obrigado a ser “normal” para ser
aceito na turma. Diferente de outras pessoas, eu nunca fui rejeitado por ser um
“quatro-olhos”, mesmo eu sendo o único da minha turma de colégio e de amigos
que usava óculos. Na verdade, eu nunca fui chamado de “quatro-olhos”.
Depois de tanto tempo, usar óculos virou uma parte de mim.
Quando eu acordo, eu pego os óculos, às vezes, antes de mesmo de abrir os olhos,
e, quando eu vou dormir, é a última coisa que eu tiro: arrumo o meu
travesseiro, o meu edredon, gravo o cenário a minha volta e tiro os meus
óculos. Os óculos são parte do meu corpo. Eu não consigo viver sem eles.
E isso é que tem me incomodado de uns tempos pra cá.
Por mais que eu adore os meus pares de óculos, há alguns
anos eu sempre fico me perguntando: como é poder enxergar sem os óculos? Como é
poder ser independente de um objeto para você viver? Como é acordar, abrir os
olhos e poder ver o que está a sua volta?
Apesar dos pesares, nós, míopes, temos algumas limitações.
Os óculos embaçam a todo momento e só quem usa sabe disso. Os óculos embaçam
com café quente, ônibus cheio em dia de chuva, durante o banho — ou seja, não
enxergo merda nenhuma durante o banho —, fumaça de churrasqueira. Além de que
os óculos saem do nosso rosto quando estamos suados, quando pegamos chuva,
quando andamos na montanha-russa, quando alguém nos dá um tapa na cara.
Na última vez em que eu fui à oftalmologista, ela me disse
que o meu caso clínico pode ser revertido com uma cirurgia a laser. Ela me explicou o procedimento,
me apontou os riscos e disse que há a possibilidade de eu sair da sala de
cirurgia enxergando sem os óculos.
Saí do consultório como se eu estivesse pisando em nuvens,
feliz da vida, sorrindo de orelha a orelha. Mas acontece que as pessoas
“normais” não entendem isso. Elas ainda me perguntam: por que você quer fazer uma cirurgia correcional? Só por aparência? Mas
eu acho os seus óculos tão legais.
Que bom que você acha!
Mas a aparência não é minha prioridade, tanto que eu
pretendo usar óculos depois da cirurgia até que eu me acostume sem eles e eu
também gosto da minha aparência de nerd.
A minha prioridade é poder ver normalmente, não depender de óculos que podem
embaçar, quebrar, arranhar.
Eu não quero me importar com a chuva durante um show de rock, eu quero poder enxergar o meu
vidro de shampoo enquanto eu tomo
banho, eu quero assistir um filme em 3D sem ter que usar dois óculos ao mesmo
tempo.
Essa cirurgia virou a minha prioridade de vida; antes até da
minha Carteira de Habilitação. Essa cirurgia só vai poder ser realizada em
outubro do ano que vem, por causa da minha idade, mas eu já estou pensando na
minha comemoração. Quero entrar no centro cirúrgico e sair de lá uma nova
pessoa.
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