De tempos em tempos, eu sinto necessidade de parar e
refletir sobre o mundo que está ao meu redor; sobre o mundo que, de certa
forma, fui eu que construí. Fui eu que fiz minhas escolhas; fui eu que defini
meus gostos, meus amigos, meus inimigos. O mundo que nos cerca é definido por
nós mesmos, mas, da mesma forma, ou ainda com mais intensidade, nós somos
moldados por outros “mundos particulares” (ou “mundos subjetivos”). Só para
começar, nós somos projeções dos nossos pais: acho que muitas pessoas não
conseguem imaginar isso, mas nossos pais viveram muita coisa antes dos nossos
nascimentos; Deus, o destino, os astros ou qualquer outra força superior que
você acredite, mesclado às escolhas particulares desses dois indivíduos, fez
com que eles se encontrassem. E assim foi com os pais dos nossos pais, e assim
será com nossos filhos...
Nossas vidas só existem por causa desses encontros. Nossos
pais namoraram outras pessoas, mas alguma coisa quis que aquele casal se
juntasse. Se meu pai ou minha mãe tivessem decidido por se casar com outra
pessoa, eu não existiria. Ou talvez existisse, mas eu não seria essa pessoa que
sou hoje! Seria uma pessoa completamente diferente, que teria incorporado
desejos, gostos, preconceitos e ambições de um mundo distinto do meu. Eu teria
nascido em outro lugar e não teria encontrado as pessoas que estão ao meu
redor. Incorporei a herança que eu trouxe dos meus pais para o meio social e
fiz minhas escolhas: por causa do encontro deles, dos meus avós, bisavós... eu
estou aqui pronto para fazer os meus
encontros!
No fim, nossas vidas tem a estrutura que vem dos nossos
pais, mas, mais superficialmente, são moldadas pelos nossos encontros. Temos
relações com todo o mundo e esse contato com cada pessoa (o contato que
aconteceu devido às minhas escolhas e às escolhas delas) é único e é uma peça a
mais para o quebra-cabeça — ou a colcha de retalhos, se preferir — que forma
nossa vida.
Cada dia que passa, eu tenho mais noção das energias que são
transmitidas de uma pessoa para a outra. São energias que foram acumuladas
durante as minhas tantas vivências e que serão transmitidas para quem estiver
ao meu lado; para quem, de qualquer forma, tiver algum contato comigo. Essas
palavras são apenas uma forma racional de transmitir algo que já estava
impregnado no meu subconsciente: prova disso é que, desde muito tempo, eu penso
que o aperto de mão, o abraço, o beijo, o sexo, o sorriso não são coisas
banais. O contato físico só aumenta o grau das energias que são transmitidas
sem barreiras entre os corpos.
E, de alguma forma maluca, acho que sinto uma necessidade
imensa de não deixar que a minha chama, que as minhas energias se apaguem
depois da minha morte. Sinto uma necessidade imensa de deixar marcas pelo
mundo. Tenho medo de parecer vaidoso, mas fico pensando se os meus diários,
minhas anotações ordinárias, meu bloco de notas estarão nas mãos de outras
pessoas no futuro. O que as minhas palavras tão íntimas e pessoais
significariam para alguém que nunca me viu? O que minhas palavras significariam
para uma pessoa que viveu numa época diferente da minha e que tem medos e
anseios diferentes? Me achará fútil ou concordará com minhas preocupações? Meu
legado escrito, assim como o legado escrito, visual ou musical de tantos outros
do passado — filósofos da Antiguidade, romancistas do século XIX, pinturas do
Renascimento, esculturas barrocas, o rock
dos anos 60, registros de batismo, cartas entre apaixonados, diários de
bordo, documentos de Estado, filmes de família, álbuns de fotos, cadernos de
receita —, é a prova de que existe vida após a morte.
O filme A Viagem , a obra mais pretensiosa que eu já vi em
toda minha vida, fala justamente sobre isso: é um enredo que se passa em seis
tempos diferentes — em três horas de exibição — e mostra que cada contato é um
caminho com muitas possibilidades; que a morte é apenas mais uma porta que se
abre; que cada crime ou ato generoso será um novo arranjo de peças no tabuleiro
da nossa vida; e que os nossos sentimentos mais intensos — o amor, o desejo
pela liberdade ou pela justiça — sobrevivem a nós mesmos, alterando a vida dos
que ainda estão por vir.
Um comentário:
Já estava com vontade de assistir ao filme, agora com esse comentário vou assistir amanhã mesmo. Ainda mais sendo aprovado por um critico de artes com você amigão. Um abraço Lucas....
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