domingo, 21 de novembro de 2010

A Bruxa da Rua Donavan

Júnior é um adolescente que trabalha para um supermercado da cidade. Não se sabe o porquê — o tamanho da cidade ou o movimento do supermercado —, mas as entregas são feitas de bicicleta. Daquelas que tem uma caixa na frente. E Júnior era o responsável pelas entregas.

Mas ele quase nunca saía até muito longe. Uma vez tinha ido num bairro logo acima que tinha muitas ruas sem asfalto; outra vez tinha ido ao último bairro, no extremo norte da cidade; e naquele bairro separado dos outros tinha se perdido uma vez.

O patrão, um senhor simpático de cabelos brancos, óculos e grande nariz, atendeu ao telefone. Uma voz esganiçada, é o que dá pra se imaginar dessa personagem, pediu alguns itens, sempre explicando para que seria usado:

— Quero meia dúzia de agulhas — leitor, não se esqueça da voz esganiçada! — e um retrós de linha para a minha costura. Quero uma caixa de velas. Sim, pois na noite passada cortaram a energia da minha casa. Ficamos no breu sem velas. E traga muitas caixas de fósforo. Um maço de caixas de fósforo. Sim! Preciso queimar... coisas... velhas. E traga uma cachaça. Branca. Não quero aquelas coisas aromatizadas. Aqui em casa já tem muita canela, hortelã e arruda.

— Qual é o endereço?

— Rua Donavan, nº 13.

O dono do supermercado desligou o telefone quando o pedido tinha sido feito. Estava com a cabeça tonta de tanto ouvir a mulher falar.

A Rua Donavan ficava bastante longe. Não era no fim da cidade, mas Júnior deveria atravessar muitos bairros até chegar à casa da cliente.

Júnior colocou as sacolas dentro da caixa da bicicleta e saiu. Gostava de andar em alta velocidade; voar baixo, como dizia para os amigos. Ele chegou ao bairro e levou muito tempo para encontrar a rua procurada.

Desceu por um conjunto de prédios decrépitos, umas antigas instalações de fábricas, mercados, estoques e, diziam, até uma cadeia. Marcos, amigo de Júnior, conhecia aquele prédio: dizia que era possível ouvir gritos durante a noite.

Um calafrio desceu por sua espinha.

Número 13. Um número instigante. Uma casa sem pintura, um portão de madeira caindo aos pedaços; sem capainha, já se podia supor. Com os nós dos dedos, Júnior esmurrou o portão de madeira.

Um homem enorme abriu o portão. A descrição é de baixo pra cima, que é menos assustadora: estava de chinelos, calça surrada até não poder mais amarradas por um cordão, sem camisa — daquele físico chassi-de-grilo, com pelos nos umbigo —, um colar de conchas — pelo menos parecia —, dentes amarelos e um cabelo cinza gigantesco que se estendia pra todos os lados: alto, baixo, direita e esquerda. Poderia ser confundido com um hippie nos anos 60.

— Que que você quer aqui, moleque? — Pra completar, um hálito horroroso.

— É... é... cof, cof... eu trouxe uma entrega.

— Entrega? É a galinha?

— Não. É do super-mer-mercado. — Ele olhou dentro da sacola. — Tem... é... algumas... velas, fósforos e... agulhas e linhas.

O homem tomou a sacola da mão do menino numa velocidade assustadora. Júnior teria desmaiado, mas ele precisava viver até o próximo capítulo dessa história.

— Entra.

Não teve como recusar. O homem gigante lhe puxou pelos braços e bateu o portão de madeira.

Tudo dentro daqueles muros altos era sujo: penas e folhas espalhadas por todo o jardim — se aquilo poderia ser chamado de jardim —, restos de comida jogados num canto, ratos e galinhas e gatos coexistiam naquele ambiente. Uma mancha vermelha pareceu sangue aos olhos assustados de Júnior. “Eu quero a minha mãe”, foi a única coisa que ele pôde pensar antes de chegar a mulher.

Panos e mais panos cobriam o pedaço mínimo de gente que andava. Abraçada a um gato, muitas penas e folhas no seu cabelo grisalho, diferente de sua boca que tinha poucos dentes. Dois, talvez.

O homem estava ao seu lado com um guarda-costas. “Seu filho”, pensou Júnior.

— Trouxe toda a mercadoria, meu jovenzinho?

Ele respondeu com um gesto. O seu corpo estava tenso, mas ele tentava disfarçar o medo. Mas ele sabia: os olhos são incapazes de mentir. E aquela bruxa que fazia rituais com gatos, galinhas, ratos, acendia velas para iluminar a macumba, que bebia cachaça nesses ritos e fazia bonecos de pano com aquelas agulhas e aquelas linhas lhe olhava sempre nos olhos, como se querendo descobrir algum segredo.

— Me dá o dinheiro — ela disse para o homem. Júnior, agora, concluiu que ele não era filho da bruxa. Só se aquela mulher fosse tão doida que beijava um filho na boca tão ardentemente. Ela lhe passava a língua murcha pelo pescoço, no peito, até a barriga. Ele tinha quase o dobro de sua altura.

— Eu não tenho — ele respondeu.

A bruxa velha riu. Seu parceiro também.

— Não quer entrar pra tomar um chá — ela fez o convite ao rapazote.

Júnior teria atravessado aquele portão de madeira no peito se ele não tivesse aberto. Montou na bicicleta e, agora sim, voou baixo. Seu patrão teria que descontar aquele dinheiro do seu salário, mas ele não voltava no nº 13 da Rua Donavan.

Naquela noite custou dormir. Quando conseguiu, teve pesadelos. Imaginou cenas íntimas do homem gigante e da mulher de dois dentes. Sonhou com os bonecos de cera, com as galinhas sacrificadas e nos ratos que viviam dentro do armário onde aquela mulher guardava o chá que tinha lhe oferecido. Acordou assustado quando sentiu a textura daquela língua murcha pelo seu pescoço, no peito, até a barriga...

Um comentário:

Clara disse...

Nossa, achei que o rapaz ia servir de cordeiro em ritual de macumba! Credo...
Se fosse eu ia desconfiar das coisas que foram pedidas pela velha macumbeira. Eu, heim?

Gostei do texto! Tem continuação?