segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Eu nunca mais ando sem documento

— Como assim? Eu não sabia dessas coisas. — Eu estava indignado com aquela notícia.

— Pois deveria saber, rapazinho — São Pedro repetiu mais uma vez. — Sem a documentação necessária não se pode entrar no céu. O senhor deveria ter prestado atenção nos panfletos colocados logo na entrada.

— Mas, São Pedro, o meu carro pegou fogo. Eu não tenho documento algum.

— É o que muitos que vem do inferno dizem todos os dias. Estou cansado da mesma
desculpa. — Virou-se para a enorme fila atrás de mim. — Próximo.

— E, então, como fica minha situação? Eu fico aqui? Um mendigo do céu?

— Olha, isso não é coisa muito certa de se fazer, mas… Eu posso te mandar de volta pra Terra.

— Me ressuscitar?!

— Não necessariamente. Como o senhor acaba de dizer, o seu carro pegou fogo. Eu não posso colocar sua alma num corpo carbonizado, né? — Abriu uma pasta. — Mas tem um corpo disponível. Não é 0 Km, mas dá pro gasto.

Eu não estava acreditando no que eu estava ouvindo. Uma segunda chance!

— Só porque eu sou camarada, eu vou adiantar pro seu lado. É uma burocracia danada, mas… vou te mandar hoje mesmo. Depois eu me entendo com o chefe.

— Estou pronto.

São Pedro puxou uma alavanca e eu senti minha alma despencar. Eu não estava nem acreditando que eu voltaria pra Terra. Poderia sentir o gosto de uma pamonha, acabar de ler o livro que eu estava lendo, ver o filme que estreia no mês que vem… Era bom demais pra ser verdade.

Boca maldita!

Senti um baque eu estava deitado numa cama macia e cheirosa. Minha cabeça estava doendo e minha orelha estava pinicando. Fiquei sentado e cocei a nuca. Meu cabelo não era tão crespo quanto eu me lembrava, eram até lisos demais, e depois de alguns segundos que eu percebi que ele também não era tão grande como agora. Nem tão loiro.

Coloquei os dedos no rosto e percebi que estava sem óculos. Já era um ponto positivo.
Eu consegui enxergar com os dois olhos. Perfeitamente.

Fiquei em pé e olhei para o quarto amarelo. Gente rica. Era bom demais. Um espelho.

Estava morrendo de curiosidade de ver meu novo corpo. Fui andando devagar, colocando meus pés descalços um a um. Sem barulho. Quase de frente, fechei os olhos.
Que rufem os tambores. Abri os olhos.

Antes eu não era tão jovem, tão magro, tão lindo, nem tão loiro. Loira, na verdade.

Eu era uma mulher.

— Jesus, Maria e José!

A camisola semitransparente permitia que eu visse meu corpo liso, sem nenhum pelo, sem nenhuma celulite. Esbelta. Via os traços finos no meu rosto, meu nariz delicado, meus lábios finos, meu cabelo sedoso. Via o contorno de minha silhueta, os meus seios redondos, minha cintura fina, minhas pernas espetaculares.

Eu ainda estava meio tonto (ou tonta) quando abri o guarda-roupa. Eu sei muito bem combinar roupas. É fácil. Mas eu não tinha mais de 150 opções de blusas, calças, cintos e bolsas. E acessórios.

Saí do quarto me equilibrando no salto. A primeira pessoa apareceu na minha frente.

— Dra. Vivian. Que roupa é essa?

Ótimo. Tudo que eu precisava. Mas eu gostei do “doutora”.

— É… Gruhm… Por que você tá me perguntando? — ouvi minha voz suave pela primeira vez.

— Hoje é segunda-feira. A senhora não vai para o consultório? — a mulher uniformizada me perguntou. Provavelmente, empregada domética da tal Vivian.

— Consultório. — Eu ri. — É claro. Eu vou para o consultório porque eu sou…?

— Psicóloga?

— Isso. Psicóloga. — Me virei para subir as escadas e pôr uma fantasia, digo, minha roupa de psicóloga. — Espere, Rita. Você sabe dirigir. Eu não estou bem pra dirigir hoje.

— Pelo que eu saiba a senhora nunca dirigiu. É por isso que tem um motorista. Outra coisa: meu nome é Maria.

Roupa de psicóloga eu desci pelas escadas e entrei no carro. A Vivian, quer dizer, eu ganho bem, né?

O motorista me levou para o consultório. Procurei na bolsa alguma coisa para eu me situar naquele prédio de 33 andares. Um cartão. Vivian Medeiros – 19º andar.
Eu acho que aquele foi um dia normal. Normal para uma psicóloga. Não tinha tido doidos como eu imaginava, mas eu pude ajudar os pacientes por causa da minha experiência em leitura de auto-ajuda.
Cheguei em casa morto (ou morta) de cansaço. Maria já tinha ido embora e o motorista me perguntou se precisaria de mim. Eu disse que não, mas essa noite precisava dar uma estudada na agenda da doutora.

Tomei um banho gelado e caí na cama com dor de cabeça. Tinha colocado uma camisa larga mesmo. O corpo dela ia desacostumar da camisola.

Minhas costas estavam doloridas. Eu não estava acostumado com aquele salto fino, nem com esses seios siliconados.

A campainha tocou e entrou fundo no meu cérebro. Tirei logo a roupa e coloquei uma camisola roxa que combinava com um robe (já estava aprendendo). Abri a porta, daquelas que só se vê em novela.

Um homem estava de costas (Meu Deus, um assassino?). Virou-se pra mim e me apontou um buquê de rosas vermelhas. Ele era moreno, com os cabelos caídos nos olhos verdes, barba mal-feita, roupa estilosa…

— Ainda não está pronta, meu amor? — ele aproximou seus lábios dos meus. Eu me
esquivei.

— Só mais tarde.

Ele se sentou no sofá.

— Eu espero o tempo que for preciso.

Merda. Quem é esse?

Subi as escadas correndo. Agenda, agenda, agenda…

ENCONTRO COM O BRUNO.
Que beleza! Que desgraceira! Aonde esse homem vai me levar?

Desci com um vestido vermelho, com medo que ele achasse que fosse vulgar (já comecei a ficar maluco. Estou preocupado com o que esse homem vai pensar!). Eu acho que eu tinha acertado na roupa, no sapato, na bolsa, no acessório, na maquiagem…
Quanta coisa, meu Deus!

— Você está linda!
Não foi possível contê-lo. Ele me beijou antes que eu pudesse me desviar. Ele era quente e tive a impressão de que tinha ficado algum fio de cabelo na minha boca.

Não tive que aguentar muita coisa. Quer dizer, coisa muito pior. Só mais meia dúzia de beijos (um até muito atrevido), uns elogios, a barba me pinicando e um aperto. Essa Vivian não sabia escolher. E se fosse o primeiro encontro, aquele cara estava muito saidinho pro meu gosto.
Em casa novamente. Sabia que algum dia precisaria dispensar o coitado do homem. Não sei como faria isso (eu sei o quanto dói ser dispensado), mas algum dia eu teria que fazer, antes que ele quisesse me levar pro apartamento dele.

Dormi.

Minha segunda manhã no corpo da Vivian. Eu acho que eu já podia mudar isso. Meu segundo dia como Vivian.

Sentei-me na cama. Dor de cabeça de novo. Eu não sei, mas eu acho que essa Vivian tomava umas…

— Meu Deus! — eu berrei.

Fiquei em pânico. Eu não esperava que fosse encontrar São Pedro tão cedo. Meu Deus do Céu! Eu tô morrendo. Me salva.

Maria entrou no quarto e me viu gritando, com as pernas abertas, olhando para o sangue na cama.

— Oh, dona Vivian. A senhora está tão esquisita ultimamente.

— Pára de me chamar a atenção — eu gritei. — Não vê que eu estou morrendo. É o meu fim.

— Que fim? Que fim que nada. — Ela entrou no banheiro da suíte. — A senhora só esqueceu o absorvente.

Pelo menos a Vivian sabia escolher bem os seus empregados. Maria foi tão prestativa. Nem se incomodou de eu ficar tão chato (ou chata): não querer comer, chorar vendo televisão, falar mal até a mãe… Até um abraço ela me deu.

— Eu sei como são essas coisas — ela disse. — Isso é assim, mesmo. Só dura uns cinco dias, depois é só no outro mês.

Meu Deus! Eu nunca mais ando sem documento.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, muito engraçado... continue assim.
Gosto muito dos seu blog.