— Eu sempre fico me perguntando, como será o dia da minha morte — Hélio filosofava num canto.
— Tomara que não seja no dia da final da Copa do Mundo! — Samuel disse do outro lado.
Era domingo. Dia da Final da Copa do Mundo de 1994: Brasil e Itália.
Dona Margarida tinha morrido na manhã do dia 17 de julho. Os parentes tinham que velar a pobre senhora. Eram duas horas da tarde e quase ninguém tinha ido ver a coitada da falecida.
Tinham aparecido os filhos e filhas, os netos e algumas noras. Os genros estavam bêbados demais para irem a um velório. Tinha alguns sobrinhos e algumas senhoras do grupo de oração. Mas ninguém demorava muito.
Tia Judite era a única que tinha ficado ali desde cedo e que dizia para os filhos de dona Margarida para terem mais consideração pela mãe morta.
— O que a senhora disse? — Hélio estava bêbado desde o dia anterior. Tinham enxugado todas as garrafas de umas duas caixas de cerveja.
Várias amigas de dona Margarida resolveram almoçar na casa dela. Não sei por que as pessoas vão almoçar na casa da pessoa quando ela morre. Mas todo mundo tem essa mania. E era na casa da dona Margarida que todo mundo da família tinha combinado de assistir o jogo.
— Ninguém liga a televisão aqui, hoje — retrucou Tia Judite.
O povo ficou desesperado. E todo mundo já começou a ficar desestruturado, sem rumo… Os que estavam mais pra lá do que pra cá começaram a dançar e as mulheres brigavam com tia Judite. Mas a velha era teimosa:
— Que desrespeito!
A família ficou alvoroçada. Tinha um pouco de gente no velório, na casa da dona Margarida, na rua, no barzinho da esquina…
Já eram três horas da tarde e o jogo estava marcado para 16:35. Os genros ficaram doidos. Encostaram uma caminhonete na garagem da casa da dona Margarida. Colocaram as caixas de cerveja e o tacho de galinhada.
— Vamo’ arranjar um lugar pra nóis vê o jogo, sua véia chata! — Hélio gritou. Samuel era o co-piloto.
Foram pra casa do irmão do Samuel. Tinha umas trinta pessoas reunidas na frente d’uma televisãozinha. Pelo menos eles iam ver o jogo. O Hélio, do jeito que ele tava, não ia ver nada.
Desceram mais um monte de crianças, as mulheres, os bebuns, os velhos... Eu acho que tinha até umas senhoras do grupo de oração.
O jogo ficou no empate, mas não podia ter dois vencedores. Prorrogação e depois pênaltis. Enquanto isso, no velório, tava a dona Judite e uma velhinha. Sendo que a última tinha um radinho ligado.
— Que absurdo! Não tem nenhum filho de Deus pra enterrar a coitada.
Foi Roberto Baggio quem fez a felicidade brasileira quando ele errou o pênalti que poderia significar a vitória para a Itália.
Nunca um gol foi tão comemorado. Quer dizer, um erro. O Brasil era o primeiro país a se tornar tetracampeão.
— Agora, eu carrego o caixão da dona Margarida! — disse Hélio para Samuel. — Pensando bem, deixa pra amanhã. Hoje eu quero beber.
Até hoje existe uma piada nessa família: que até a dona Margarida pulou quando o Baggio errou o pênalti.
Um comentário:
Primeira vez em seu blog. Gostei do seu texto. Lembrou-me Chico Xavier, que também morreu durante a copa, mas de 2002. Ele falou que morreria quando o país estivesse feliz, acertou. Deve ser mais complicado para quem fica, entrar em contradição de sentimentos, ter que lidar com a euforia e o luto. Não sei finalizar comentários...Hum, tchau ^^
Postar um comentário